terça-feira, 15 de dezembro de 2009

DIFERENÇAS

...quando Perez chegou na cidade, a curiosidade das pessoas fez com suas mãos inchassem. Cresceram tanto que nem homem, nem mulher era capaz de colher uma flor sem que não derrubasse a árvore.
Perez chegou na cidade calmo e conformado, e não me cabe dizer o que foi fazer naquele lugar.
O que possso dizer é que daquele dia em diante o toque nunca mais foi sutil, o cumprimento leve ou o abraço singelo.
Porém entre esbarros e tapas todos ainda querem saber qual é o segredo de Perez e sua mão infantil.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O PASSEIO

Das grandes histórias que escuto, ouso somente o delírio do passado. Ser velho não é uma opção. A percepção da morte a beira da compreensão da vida faz de mim um sábio frustrado, personagem sem direito a glamour.
Veja só ! Não faz muitos dias recebi uma visita do meu neto, um rapagão, homem formado... Não sei bem a idade dele - beira os 35 anos -, é casado e sua esposa está grávida, logo serei bisavó, - não que isso signifique alguma coisa -, mas a informação vale.
Logo o enfermeiro me conduziu a porta da sala de visitas, meu neto se levantou e pegou uma cadeira de rodas, disse que me levaria para dar uma volta no jardim. Fazer um passeio.
Como eu disse ser velho não é uma opção, como também não tive opção de rejeitar “o passeio”. Alias pensar sobre ter ou não opção sempre foi uma constante em minha vida. Pra começar meu nascimento fez meu pai optar em vir para a capital com minha mãe e meus irmãos. Eu sou o quinto filho, e meu pai não teve como recusar uma oferta de emprego na fabrica de sapatos do velho Italiano, oferta esta que meu pai estava protelando em aceitar e com o meu nascimento ele não teve opção, afinal a família estava grande demais para ele sustentar somente com o trabalho na roça.
A fábrica do Italiano ainda existe. Inclusive meu neto estava calçando um sapato da marca do velho. Provavelmente meu neto não teve melhor opção de calçado. Não que ele seja pobre, na verdade ele é influenciável...
E quem diria ?! A marca do Italiano está na moda!
E moda para pessoas como o meu neto é um ótimo atalho para se tomar uma decisão.
“Uso este ou aquele?”
“Já sei! Aquele, pois este está fora de moda”
Se velhice estivesse na moda, ai sim poderia dizer que ser velho é uma opção. Mas não é! Por isso estou nesse asilo, por isso estou conversando com o senhor, por isso tive que dar um passeio no jardim com o meu neto.
Com meu neto, com as grandes histórias e com os delírios...Outros delírios !

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

O DESTACADO - O ESCOLHIDO

..quando o cachorro atravessou a rua balançando o rabo e com a língua largada no canto do focinho, o saco de lixo já se conformava com o seu final...

Sacos de lixo têm um grande problema, são criados para sofrerem, todos são assim.
Eles ficam todos grudados uns ao outros, não podendo usufruir nem um pouco de individualidade. São todos da mesma cor, mesmo tamanho, são padronizados e classificados pela quantidade de litros que podem receber.
Infelizes sacos! Quando algum é destacado por alguma mão aflita, logo sente que poderá se mostrar único. Afinal ele foi dentre vários o DESTACADO.
Carregado pela mão solicita, logo depois que a euforia de ter sido escolhido passa, o saco pensa:
“Que resíduo o destino reserva para mim?”
Afinal pouco se sabe sobre o que acontece com aqueles que são destacados, a única coisa é que as mãos determinadas os enchem com todo tipo de resíduos. Por isso ser destacado dá uma sensação de alegria muito curta diante do improvável, afinal de contas pode-se enfiar saco abaixo de folhas secas a bosta de animal...
Ser destacado da maioria significa sair de uma vida padronizada para ter sua tão esperada individualidade trocada pelo o que as mãos terríveis acham por bem um saco ter como conteúdo.

...o saco que neste momento está para ser destroçado pelo Vira-lata, conformado está, os restos de frango que ele guarda atraiu o cachorro. Diante de tal final, mesmo conformado o saco clama:
“ Meu deus será este o final dos escolhidos, ser destroçados por bocas famintas? Acho que eu mereço, afinal carrego em mim o resíduo do destino de outro escolhido. Pobre frango destacado!”
Neste momento quando o cachorro atravessou a rua balançando o rabo, distraído pela fome, terrivelmente foi atropelado.
O saco de lixo, diante daquela situação concluiu:
“A vida é realmente irônica!
Algum irmão destacado recebera como conteúdo o cadáver desse cão que a minutos atrás iria acabar com a minha vida para comer o cadáver de um frango escolhido...

Pobres de nós os escolhidos e destacados!
Pobre cão atropelado!

quarta-feira, 1 de julho de 2009

TRAVA LÍNGUAS

Ontem vi no ônibus um homem que me chamou muito atenção.Quando estava próximo ao ponto final, distraidamente olhei para ele (até então não havia me atentado a sua presença), nesse momento pegou o celular e começou a repuxar os olhos e boca. Fiquei muito assustado, aquele homem devia ter recebido uma triste notícia, quase me tornei cúmplice do seu desespero. Ando sensível ultimamente, ainda não me acostumei com a idéia da separação...Quando estava prestes a agir solidariamente reparei que ele não derramava uma lágrima se quer.
O ônibus chegou ao ponto final, e como eu estava sentado no banco mais próximo a porta, deixei que todos descessem, queria ver mais de perto aquele homem.
Passou uma mulher feia, um senhor sonâmbulo, um menina estudante e seu namorado, outra menina estudante, por fim O homem. Ele continuava repuxando os olhos e a boca, mas não estava chorando.Desci perplexo aquele homem tinha um tique nervoso. Um tique que estampava no rosto uma dor sem lágrimas, apenas a contração do sofrimento.
...que estranho, quase chorei por solidariedade!Será que eu tenho o tique do chorar solidário?


"triste tique do homem triste que chora com os tristes tiques dos tristes homens"

...é a vida...!

quarta-feira, 24 de junho de 2009

FOFOCA

- “Aquela mulher que está atravessando a rua é a Dora, sabe o que ela fez esses dias...?”
Mal tinha me mudado e já estava metido em um fuxico. Tudo bem confesso que gosto de uma fofoca, afinal sou Geminiano (pelo menos foi essa a explicação que deram por meu patológico interesse pela vida alheia), o fato é que dessa vez achei que o babado chegou muito rápido aos meus ouvidos (não sou tão Geminiano assim deve ser por que meu ascendente é Touro), enfim, depois de ter feito toda a mudança estava exausto, todos os carregadores já tinham ido embora e haviam caixas empilhadas por todos os cantos do apartamento, eram 16h e ainda tinha muita arrumação para fazer. Diante de tal situação não foi preciso pensar muito para decidir descer e ir até a padaria do outro lado da rua tomar um café e comer um misto-quente.
- Por favor amigo, um café expresso e um misto-quente!
- “Pois não chefe. O senhor está se mudando para o prédio da frente né?”
- Sim mudei hoje.
Nesse momento reparei numa mulher que estava atravessando a rua e quase que imediatamente o rapaz que estava me servindo disse:
- “Aquela mulher que está atravessando a rua é a Dora, sabe o que ela fez esses dias...?”
Mal tinha me mudado e já estava metido em um fuxico. Tudo bem confesso que gosto de uma fofoca, o fato é que dessa vez não queria me envolver tão rápido nas picuinhas locais...
- Por favor amigo, quero SOMENTE um café expresso e um misto-quente! – cortei o rapaz com firmeza e educação.
Tomei o meu café e comi o meu misto-quente. Estava tudo muito gostoso, paguei a conta, me despedi do rapaz (que ainda estava um tanto ressabiado por eu não ter lhe dado trela), voltei para o apartamento com mais coragem e energia, afinal todos os carregadores já tinham ido embora e haviam caixas empilhadas por todos os cantos do apartamento, eram 17h e ainda tinha muita arrumação para fazer.
Enquanto desencaixotava a mudança, varias vezes me veio a imagem da mulher (Dora), atravessando a rua, seus cabelos negros contra o vento, seu caminhar desatento... Seu corpo belo e conformado naquele humilde vestido branco!
Essa lembrança me pegou de súbito enquanto trabalhava com afinco, despertando em mim uma insuportável curiosidade: O que será que Dora fez esses dias?
Mais uma vez desci e fui direto à padaria, chamei o rapaz que me atendeu da outra vez. Ele veio com aquela cara de má vontade e perguntou o que eu desejava. Olhei para os lados, me certifiquei de que não havia pessoas muito próximas e sem jeito fiz com que o rapaz se aproximasse mais do balcão, mais perto possível da orelha do meu amigo e quase cochichando perguntei?
- Afinal o que Dora fez esses dias?
Tranquilamente o rapaz se afastou do balcão me encarou durante alguns segundos, e quase que imperceptivelmente esboçou um sorriso, então ele me pediu um momento, virou as costas falou com o outro rapaz que trabalhava na padaria, e entrou na possível cozinha.
Começei a ficar nervoso, qual seria o mistério daquela mulher que há algumas horas estava atravessando rua? Mulher, cujo nome agora eu rabiscava no guardanapo. Que teria feito ela esses dias? Pensei também por que o rapaz dessa vez estava me torturando com aquela espera, só podia ser pelo meu descaso anterior.
Depois de alguns minutos ele voltou com um misto-quente e um café, como que degustando cada movimento pôs no balcão o pedido que eu não havia feito, então perguntei:
- O que é isso amigo? Não pedi nada disto!
- Desculpe, mas é isso que Dora fez esses dias.
- Como assim?
- Dora é a dona desta padaria e ela esses dias nos passou que o novo morador do apartamento do prédio da frente, que também é dela, poderia comer o que quisesse como cortesia de boas-vindas.
Fiquei muito envergonhado primeiro pelo tom de sarcasmo que o rapaz usou para falar comigo, segundo pela generosidade da Dora, e terceiro pela minha fútil curiosidade.
Depois disso tudo, nunca mais me meti em fuxico, nem fiz pouco caso de pessoas de Escorpião ou neguei boas-vindas de pessoas de Sagitário.
Ok confesso que continuo Geminiano. Fofoco de vez em quando, mas estou morando em outro bairro bem longe da padaria da Dora. Afinal o outro rapaz da padaria também é Geminiano, vai saber o que ele fala de mim pelo bairro.
Agora você quer saber como eu sei o signo de todos eles?
O dono da banca de jornal que fica ao lado da padaria me contou!...Nossa qual será o signo dele?



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quinta-feira, 18 de junho de 2009

MENINA DAS FLORES


Estela colhia flores toda vez que ia à casa da avó, isto acontecia pouquíssimas vezes no ano, duas vezes na verdade, nas férias de fim e de meio de ano. A menina ficava ansiosa por vários meses. Ela amava flores, e na cidade em que vivia as flores praticamente não se faziam perceber... Fosse o ritmo acelerado das pessoas, fosse talvez o asfalto, talvez o progresso, tudo isso era motivo.
Para Estela não se viam flores por vontade das próprias flores, afinal todas são tímidas e sentimentais, custam a se exibir, algumas demoram meses para se abrir e se não dermos atenção, se não lhes dermos nomes, se não conversamos com elas... Rapidinho elas murcham.
Definitivamente a cidade de Estela não era lugar para seres de personalidade tão intensa e o melhor lugar, era sem duvida a casa da Vovó Rosa, lá todas as flores tinham nomes eram muito bem tratadas, recebiam muito amor e cuidados, era uma pequena chácara que ficava a menos de uma hora da cidade, mas que tinha um clima e um astral totalmente diferente da cidade. Estela adorava!
Certa vez quando Estela voltou de férias, como sempre ela ficou bem triste, e para diminuir a tristeza começou a recortar fotos de flores, colava todas nas paredes do seu quarto, cultivava uma espécie de jardim vertical. Na verdade que Estela fazia era projetar seu mundo colorido, tão somente seu que seus pais inconscientemente alimentaram esse gosto desde quando ela era um bebê, compravam-lhe lençóis floridos, vestidinhos com margaridas, colônias com aroma de jasmim... Alguma coisa nela despertava nas pessoas próximas a sensação de que aquela pequena criatura, como as flores, tinha uma presença frágil e marcante, de fato Estela era especial. Foi muito mimada, foi uma criança feliz, uma criança sensível, amável, tranqüila.
Naturalmente ela cresceu e o seu amor pelas flores foi se tornando menos evidente na medida em que a vida se tornava mais complexa.
Estela trilhou um caminho vitorioso sem muitas crises... Passou a salvo pela adolescência, estudou muito, se esforçou bastante na faculdade e hoje é uma engenheira super respeitada, apesar de parecer incoerente uma profissão tão técnica e rígida, com aquela criança leve amante das flores, Estela se tornou uma otima engenheira e é feliz com seu trabalho, consequentemente demostrou que na sua personalidade também tinha espaço para uma pessoa séria, sistemática e objetiva.
Porém todos que são intimos percebem que algo de sua infância ou daquela essencia florida ainda está presente, pois na mesa da Dr. Estela há um vaso com Begônias vermelhas e um porta-retrato com a foto da Vovó Rosa .
No mais o resto:
projetos de ferro e pedra escritos em folhas de papel.


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foto : Dani Luppi